terça-feira, 31 de julho de 2012

O Místico Azulão


Há personagens da cultura brasileira que, sabe-se lá porquê, só andam vivos na memória de quem conviveu com eles. Gente com histórias fascinantes e vivências ricas, e de episódios que demoram para ganhar a rua. Jayme Ovalle foi um deles. Ele conviveu com Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes; chegou até a compor uma música com o primeiro que virou um clássico: “Azulão”.

Mas este não está perdido. Felizmente, a vida dele nos encontra nas páginas de O Santo Sujo, do jornalista Humberto Werneck, em bela edição feita pela Cosac Naif. Ali está a vida do Místico, desde o início de sua existência, no Chile (não dele propriamente, mas do avô, expulso de casa), seu nascimento no Pará e seus relacionamentos com gente poderosa e as paixões arrebatadoras.

Não leia se estiver com sono ou disperso – a escrita lírica e sensual de Werneck pode lhe fazer escapar um fiapo de história que, em seguida, poderá fazer falta. Lírica e linda, aliás, fazendo entender melhor a simplicidade e a beleza dos caminhos de Ovalle, além de deixar a gostosa dúvida: que tipo de artista Ovalle foi? O grande número de citações não atrapalha a fluência da leitura, embora, em alguns momentos, elas poderiam ser transformadas em texto corrido.

Quando chegar ao epílogo, tome fôlego: é um dos mais lindos e originais já encontrados em biografias. A personagem nele é a filha de Ovalle, Mariana, e mostra como o mundo roda e as histórias se repetem. Um belo presente para nós e uma homenagem ao sujeito que fazia questão de andar por aí de monóculo.


O Levi Dosan fez uma breve entrevista com o autor, Humberto Werneck:

Como o “místico” apareceu na sua vida?
A primeira vez que ouvi falar em Jayme Ovalle foi aos 16 anos, quando li uma frase dele ("O suicídio é um ato de publicidade: a publicidade do desespero") usada como epígrafe num conto do [jornalista e escritor mineiro] Ivan Ângelo. Procurei livros dele nas bibliotecas – nada. Só mais adiante soube que Ovalle inspirou um personagem do romance O Encontro Marcado, do [também escritor e também mineiro] Fernando Sabino: o velho Germano, um diplomata aposentado que diz coisas bizarras, poéticas, inusitadas – exatamente como Ovalle na vida real. Foi na leitura de Sabino, não só desse romance como de várias crônicas, que comecei a formar na cabeça a figura singularíssima desse artista sem obra.

O senhor acredita que ainda haja muitos personagens da cultura brasileira que mereceriam mais atenção?
Há vários. Por exemplo, Augusto Frederico Schmidt – aliás, muito amigo de Ovalle e marido de uma sobrinha dele –, que, além de poeta, foi empresário de sucesso, fundador do primeiro supermercado do Brasil, além de intelectual que teve papel importante no governo do presidente Juscelino Kubistchek. Outro extraordinário personagem, esse ainda menos conhecido, é Evandro Pequeno, músico, jornalista, homem erudito, de quem falo um pouco na biografia de Ovalle.

Que tipo de resposta dos leitores de O Santo sujo o senhor recebeu?
A maioria dos leitores que se manifestaram nunca tinha ouvido falar em Ovalle. E todos, sem exceção, se mostraram encantados com ele.

E um breve relato da experiência ovalleana de Humberto :
Se soubesse o que me esperava, provavelmente não teria feito o livro. Não quero valorizar o meu trabalho, mas a batalha para reconstituir a figura e a vida de um personagem sobre quem se sabia muito pouco, praticamente já sem contemporâneos (Ovalle morreu em 1955, aos 61 anos), foi uma empreitada insana. Costumo dizer que foi algo semelhante ao trabalho dos técnicos para reconstruir um avião espatifado, como forma de conhecer a causa do acidente. Mas, pensando bem, esta não é uma boa imagem, pois os técnicos de antemão sabem como era o avião – ao passo que eu nem desconfiava da extraordinária riqueza e complexidade do meu personagem, do qual não tinha mais que uma tênue ideia e algumas informações, várias delas equivocadas. Foram 17 anos para reconstituir Jayme Ovalle, artista que, mesmo não tendo obra, influenciou vários outros, entre eles figuras graúdas como Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes.



Título: O Santo Sujo
Autor: Humberto Werneck
Editora: Cosac Naif
Páginas: 400
Preço médio: R$ 72

terça-feira, 24 de julho de 2012

Um Retrato Da Imprensa Na Cochia


Em 1992, nosso país passou por um negócio de nome estranho: impeachment. Ou seja: o presidente foi convidado a se retirar de seu posto. O hoje senador Fernando Collor de Mello saiu da presidência pela porta dos fundos, entrou na porta da frente do avião e foi para Miami gastar o dinheiro que só o Diabo sabe como ele conseguiu.

Como a imprensa cobriu a primeira eleição direta para presidente depois dos anos cinzas da ditadura? Como jornais, revistas e as emissoras de televisão mostraram os anos Collor de governo? São questões que o jornalista Mário Sérgio Conti pretendeu responder em Notícias do Planalto, livro que mostra os bastidores dos bastidores do jornalismo naquele período.

O livro, ganhador do prêmio Jabuti de reportagem, segue por dois caminhos: como os veículos de comunicação reportaram os anos colloridos e como esses veículos surgiram. Mostra Victor desaconselhando o filho Roberto a formar uma revista semanal; Domingos e seu começo como galã de novela; Octávio, os sapatos estranhos, a rodoviária, o jornal; Roberto, a morte do pai no banheiro e a penhora da casa; João e o sogro do governo.

Alguns casos nebulosos são esmiuçados, como a edição do debate do segundo turno entre Collor e Lula – afinal de contas, a Globo forçou ou não a barra a favor de Collor? Conti passa pelas ordens dadas, pelos envolvidos (Roberto Marinho, Boni, Alberico Cruz e Armando Nogueira) e as consequências geradas a cada um deles.

Conti usa sua experiência como ex-editor chefe da revista Veja, ainda na época em que a Veja praticava jornalismo (1992-1997), para entrar em labirinto tão pantanoso. Aliás, Mário, hoje da revista piauí e apresentador do programa Roda Viva, da TV Cultura, saiu da Editora Abril para escrever o livro, que consumiu dois anos de pesquisa, inclusive com ex-chefes – ele também trabalhou na Folha de S. Paulo. Um bom retrato para se conhecer aqueles que nos abastecem de informação.

P.S.: vale a pena ver o Roda Viva em que Conti fala do livro (é, o mundo roda...). Serve para ver o que acontece quando se junta muitos jornalistas na mesma gaiola:
www.youtube.com/watch?v=1DCZEa2NOEE



Título: Notícias do Planalto
Autor: Mário Sérgio Conti
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 752
Preço médio: R$ 78
OBS.: há uma versão econômica, de papel mais simples e 528 páginas, que sai por R$ 39,50.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Como Se Disseca Leões


O livro Na Toca dos Leões, a história da agência de publicidade W/Brasil (hoje WMcCann) rendeu uma baita dor de cabeça ao seu autor, o jornalista Fernando Morais, por conta de um caso relatado nele. Nas eleições para presidente de 1989, o hoje deputado federal Ronaldo Caiado teria sugerido a ideia de obrigar mulheres nordestinas a fazer laqueadura. Caiado entrou com um processo, o livro foi apreendido, e Morais, proibido de falar de sua obra, algo que, segundo ele, não acontecia nem na época da ditadura.

Histórias quentes como essa fazem parte da vida de um dos maiores publicitários de todos os tempos, Washington Olivetto. O livro mostra como é o efervescente mundo da publicidade, em que o Brasil faz escola e ensina a outros países. E não é só isso: Morais conta a criatura e os criadores, com perfis de Olivetto e dos seus dois sócios na W: Gabriel Zellmeister e Javier Llussá Ciuret.

Morais topou escrevê-lo depois de um pedido de Olivetto, que, ao ler o clássico O Reino e o Poder (de Gay Talese), a história do jornal The New York Times, ficou com vontade de ter uma biografia para chamar de sua. O livro, no entanto, nem de longe é chapa-branca, e conta com a tradicional chatice (no bom sentido) de Morais em contar os detalhes e os detalhes dos detalhes.

O jornalista passa por todas as fases de Olivetto, desde a infância (quando ficou um ano sem poder andar), a sacada que o fez entrar na publicidade, sua entrada na agência DPZ (e sua conturbada saída de lá), a fundação da W/Brasil (à princípio W/GGK, em sociedade com uma empresa suíça) e como sua agência e seu nome se tornaram fortes no mercado da comunicação. E populares também: basta lembrar que, só por Jorge Ben Jor, ela já foi citada em música duas vezes.

O livro reserva um capítulo ao mais delicado episódio vivido por Olivetto: seu sequestro, em 2001, depois de parar numa falsa blitz. Morais relata todo o incidente e a operação que o libertou – aliás, o sequestro aconteceu enquanto o jornalista fazia a apuração para o livro. Bom para quem quer ler sobre uma história de sucesso, e para o ego do corintiano Olivetto também – porque a primeira biografia a gente nunca esquece.

 
Título: Na Toca dos Leões
Autor: Fernando Morais
Editora: Planeta
Páginas: 496
Preço médio: R$ 54,90

terça-feira, 10 de julho de 2012

O Vermelho E O Cristalino


Biografias de jornalistas são sempre bem vindas – porque também somos pessoas; porque jornalistas também podem ter boas histórias; porque conhecer como e quem faz jornalismo ajuda a todos a entender esse ofício tão importante. E, quando se tem um verdadeiro personagem dessa profissão, aí a pena vale o dobro.

É o caso de Tarso de Castro, que teve a sua vida colocada em papel em 75 kg de Músculo e Fúria, do jornalista Tom Cardoso. Ideia oportuna essa a de registrar a vida de um dos fundadores d'O Pasquim. E ele tinha de participar mesmo da fundação da mais anárquica das publicações. Tarso era um indomável, sobretudo quando o assunto era bebida, mulheres, irreverência – e qualidade para escrever.

Quanto à bebida, não teve culpa – começou a tomar umas por questões profissionais, ainda na época em que trabalhava no jornal do pai, no Rio Grande do Sul. Quanto à irreverência, compensava as loucuras que fazia com sagacidade e inteligência – hilário saber que, na sua passagem pela Folha de S.Paulo, dava expediente nos bares próximos, e só voltava à redação se Lilian Pacce, hoje entendedora de moda, fosse buscá-lo. Merece atenção também sua participação na música “Detalhes”, aquela mesmo, do rei...

Como revés, apenas alguns piolhos na revisão de conteúdo – há no livro, três vezes em páginas próximas, a informação de que Leonel Brizola era cunhado do presidente golpeado João Goulart – mas nada que atrapalhe a leitura. Nele, você vai conhecer um jornalista que fazia jornalismo com vermelho (de sangue de repórter) e o cristalino (dos etílicos).

O Levi Dosan fez três perguntas para o autor, Tom Cardoso:

Como surgiu a ideia de fazer a biografia do Tarso de Castro?
Meu pai, Jary Cardoso, atualmente editor de Opinião do jornal A Tarde, em Salvador, trabalhou com o Tarso em duas publicações: JA e Folhetim. Meu pai tinha vontade de escrever um livro sobre imprensa alternativa e, tarsista de carteirinha, fazer justiça ao personagem Tarso de Castro, o verdadeiro criador d'O Pasquim, que hoje não é nem citado nas matérias especiais sobre o jornal. Ouvindo meu pai falar sobre a importância de Tarso, o estilo passional, o sucesso com as mulheres, a coragem e o atrevimento etc., não tive dúvida que a vida do cara valia um livro. Meu pai me entregou uma caixa com todas as publicações editadas pelo Tarso, li tudo e comecei as entrevistas. Terminei tudo em um ano.

A imagem que se tinha dele, e que já não era tão conhecida, era a de um jornalista porralouca, um incontrolável. Você acredita que esse estereótipo acabou depois do livro?
O Tarso, apesar da porralouquice, era um fazedor de coisas, e fazer jornalismo durante o regime militar não era para qualquer um. A porralouquice fez d'O Pasquim o jornal que foi, aberto a todos os movimentos. Se não fosse pelo Tarso, diretor de redação, O Pasquim não teria a mesma força, nem o mesmo tom libertário. Se dependesse do Millor, do Ziraldo e do Francis, as grandes entrevistas (Flávio Cavalcanti, Roberto Carlos, Leila Diniz) nem existiriam. É claro que o estilo do Tarso, o indomável, o perdulário, também contribuiu para que os jornais não sobrevivessem por muito tempo ou que ele (no caso d'O Pasquim e da Folha) acabasse expulso pelos desafetos. A Folha, por exemplo, perdeu muito com a saída dele.

Por que o Millor Fernandes não quis falar sobre Tarso?
Eu queria fazer uma biografia passional, no estilo Tarso. O meu livro é um livro a favor do Tarso, não é um livro de manual, não tem o “outro lado”, tanto que mandei um faz para a casa do Millor, pedindo a entrevista, ele não respondeu e eu não insisti. O Millor já tem uma legião de bajuladores, e o Tarso estava esquecido. E ele teve, sim, uma atitude covarde durante o episódio da prisão do pessoal d'O Pasquim. Os que defendem dizem que ele escreveu todo o jornal enquanto os outros estavam presos, mas o cara escreveu e não foi incomodado. Todo mundo sabia o endereço do Millor. E por que ninguém bateu na sua porta? No mínimo estranho...

 

Título: 75 kg de Músculo e Fúria
Autor: Tom Cardoso
Editora: Planeta
Páginas: 280
Preço médio: R$ 44,90

terça-feira, 3 de julho de 2012

Ele Tentou...


Eu não tenho sangue de barata!” Você já deve ter dito isso. Se já, com certeza não estava na pele do diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que dedicou toda sua vida adulta trabalhando na Organização das Nações Unidas, a famosa ONU. Ele fez de um tudo lá: engoliu burocracias, negociou com facínoras, teve esperança, ajudou a montar e remontar nações. E morreu por isso.

O Homem que Queria Salvar o Mundo, da jornalista americana Samantha Power, conta a vida de Sérgio e toda sua carreira na ONU, onde começou a trabalhar aos 17 anos inspirado pelo pai, também diplomata. Queria cuidar de gente, e em determinados momentos até conseguiu, como na volta de milhares de refugiados cambojanos ao seu país de origem. Mas teve de enfrentar politicagens e pessoas mais preocupadas com documentos do que com corações e mentes.

Samantha mostra o caráter de Vieira de Mello, sua dedicação que o fez deixar de lado a vida pessoal e pousar em dois dos maiores massacres étnicos do século 20: Ruanda e Bósnia (onde sua atuação fui fundamental para que se descobrisse os crimes contra a humanidade cometidos lá). Participou ativamente da criação do Timor Leste, que, depois de uma sangrenta batalha, conseguiu sua independência da Indonésia. E teve o privilégio de ouvir mentiras de George W. Bush, inventor da invasão do Iraque, onde Vieira de Mello faria sua derradeira missão antes de morrer num atentado suicida – o último capítulo reconstitui em detalhes a explosão do caminhão que acabou com o prédio onde Sérgio estava, mostrando como aquele país foi invadido sem nenhuma estratégia.

A biografia prima por não falar apenas de Sérgio. Samantha faz uma cuidadosa ambientação – política, geográfica e humanitária –, o que possibilita ao leitor percorrer os caminhos pelos quais a vida de Sérgio andou. O único aspecto ruim da edição são as notas explicativas, colocadas no fim do livro, ao invés de estarem no rodapé, o que facilitaria a leitura.

Querer salvar o mundo pode parecer prepotência, mas foi exatamente o que Sérgio queria fazer. Pensando alto, conseguiu fazer muito numa instituição como a ONU, sem muito poder prático. Tentando seguir a lógica de que alguém pode não gostar de outro povo, mas tem a obrigação de respeitá-lo, e nada justifica que queria matá-lo, Sérgio buscou sempre uma meta: a paz.

No caderno de fotos, há um registro de Sérgio com líderes sérvios-bósnios, após uma reunião para acordo de paz na região. Na mesma imagem estão, há poucos metros de distância, Sérgio e Radovan Karadzic, principal responsável pelos massacres na Bósnia e que, dentro em breve, estará no banco dos réus de Haia. Uma pergunta a se fazer a Sérgio quando chegarmos ao céu: “o que se passou na sua cabeça nesse momento?”.

A uma certeza é possível chegar, sem perguntar: ele tentou...

 
Título: O Homem que Queria Salvar o Mundo
Autora: Samantha Power
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 688
Preço médio: R$ 66