Há
personagens da cultura brasileira que, sabe-se lá porquê, só andam
vivos na memória de quem conviveu com eles. Gente com histórias
fascinantes e vivências ricas, e de episódios que demoram para
ganhar a rua. Jayme Ovalle foi um deles. Ele conviveu com Manuel
Bandeira e Vinícius de Moraes; chegou até a compor uma música com
o primeiro que virou um clássico: “Azulão”.
Mas
este não está perdido. Felizmente, a vida dele nos encontra nas
páginas de O Santo Sujo, do jornalista Humberto
Werneck, em bela edição feita pela Cosac Naif. Ali está a vida do
Místico, desde o início de sua existência, no Chile (não dele
propriamente, mas do avô, expulso de casa), seu nascimento no Pará
e seus relacionamentos com gente poderosa e as paixões
arrebatadoras.
Não
leia se estiver com sono ou disperso – a escrita lírica e sensual
de Werneck pode lhe fazer escapar um fiapo de história que, em
seguida, poderá fazer falta. Lírica e linda, aliás, fazendo
entender melhor a simplicidade e a beleza dos caminhos de Ovalle,
além de deixar a gostosa dúvida: que tipo de artista Ovalle foi? O
grande número de citações não atrapalha a fluência da leitura,
embora, em alguns momentos, elas poderiam ser transformadas em texto
corrido.
Quando
chegar ao epílogo, tome fôlego: é um dos mais lindos e originais
já encontrados em biografias. A personagem nele é a filha de
Ovalle, Mariana, e mostra como o mundo roda e as histórias se
repetem. Um belo presente para nós e uma homenagem ao sujeito que
fazia questão de andar por aí de monóculo.
O
Levi Dosan
fez uma breve entrevista com o autor, Humberto Werneck:
Como
o “místico” apareceu na sua vida?
A
primeira vez que ouvi falar em Jayme Ovalle foi aos 16 anos, quando
li uma frase dele ("O suicídio é um ato de publicidade: a
publicidade do desespero") usada como epígrafe num conto do
[jornalista e escritor mineiro] Ivan Ângelo. Procurei livros
dele nas bibliotecas – nada. Só mais adiante soube que Ovalle
inspirou um personagem do romance O
Encontro Marcado, do [também escritor e também
mineiro] Fernando Sabino: o velho Germano, um diplomata
aposentado que diz coisas bizarras, poéticas, inusitadas –
exatamente como Ovalle na vida real. Foi na leitura de Sabino, não
só desse romance como de várias crônicas, que comecei a formar na
cabeça a figura singularíssima desse artista sem obra.
O senhor acredita que ainda haja muitos personagens da cultura brasileira que mereceriam mais atenção?
Há
vários. Por exemplo, Augusto Frederico Schmidt – aliás, muito
amigo de Ovalle e marido de uma sobrinha dele –, que, além de
poeta, foi empresário de sucesso, fundador do primeiro supermercado
do Brasil, além de intelectual que teve papel importante no governo
do presidente Juscelino Kubistchek. Outro extraordinário personagem,
esse ainda menos conhecido, é Evandro Pequeno, músico, jornalista,
homem erudito, de quem falo um pouco na biografia de Ovalle.
Que
tipo de resposta dos leitores de O
Santo sujo o senhor recebeu?
A
maioria dos leitores que se manifestaram nunca tinha ouvido falar em
Ovalle. E todos, sem exceção, se mostraram encantados com ele.
E
um breve relato da experiência ovalleana de Humberto :
Se
soubesse o que me esperava, provavelmente não teria feito o livro.
Não quero valorizar o meu trabalho, mas a batalha para reconstituir
a figura e a vida de um personagem sobre quem se sabia muito pouco,
praticamente já sem contemporâneos (Ovalle morreu em 1955, aos 61
anos), foi uma empreitada insana. Costumo dizer que foi algo
semelhante ao trabalho dos técnicos para reconstruir um avião
espatifado, como forma de conhecer a causa do acidente. Mas, pensando
bem, esta não é uma boa imagem, pois os técnicos de antemão sabem
como era o avião – ao passo que eu nem desconfiava da
extraordinária riqueza e complexidade do meu personagem, do qual não
tinha mais que uma tênue ideia e algumas informações, várias
delas equivocadas. Foram 17 anos para reconstituir Jayme Ovalle,
artista que, mesmo não tendo obra, influenciou vários outros, entre
eles figuras graúdas como Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes.
Título:
O Santo Sujo
Autor:
Humberto Werneck
Editora:
Cosac Naif
Páginas:
400
Preço
médio: R$ 72