O
fanatismo em seu estado mais cru
A capa do
livro se assemelha a um quadro: mostra sete japoneses que mais
parecem modelos posando para um retrato de guerreiros do século 20.
Mas não é bem o caso. Esses homens foram presos ao perseguir um
cabo da Força Pública (como era chamada a Polícia Militar nos anos
1940). Eles queriam vingar com morte o mais terrível crime que
poderia ser cometido contra a nação japonesa (segundo os japoneses
da época), e que o cabo havia feito ao acabar com uma reunião não
autorizada: pisar na bandeira branca com um círculo vermelho no
centro.
A imagem
dos sete é a face de Corações
Sujos,
do jornalista Fernando Morais, que conta a história da Shindo Remnei
(em português, Liga do Caminho dos Súditos),
organização fundamentalista surgida no Brasil no início dos anos
40 para proteger imigrantes do Japão, então inimigo dos Aliados na
Segunda Guerra Mundial.
Com o fim
da guerra e a rendição assinada pelo imperador Hiroíto em 1945
(com direito a pronunciamento em rádio anunciando a derrocada
japonesa), passou a congregar japoneses que, ao contrário dos fatos,
acreditavam na vitória nipônica naquela batalha. E passou a ter um
único objetivo: matar os japoneses que não acreditavam nessa
“vitória”. Ou, como eram chamados os derrotistas, os “corações
sujos”.
Os sete
queriam mostrar na foto que, apesar de presos, ainda podiam mostrar
força. Fisicamente mirrados, a única energia que restava a eles era
a crença de que o Japão não havia sido derrotado, mantendo a
invencibilidade em guerras que já durava 2.500 anos. Essa energia,
aliás, não serviu para praticar a vingança, já que eles não
conseguiram matar o cabo.
Mas nem
todos os inimigos dos tokkotai
(como
eram chamados os membros da Shindo Remnei) tiveram essa sorte. Ao
todo, como mostra o livro, 23 pessoas foram mortas pela organização
e 147 ficaram feridas.
Antes dos
ataques, os “corações sujos” recebiam avisos: ora com ofensas,
escritas em japonês, pintadas em frente às suas casa (com dizeres
como “traidor da pátria”), ora recebendo um sotoba,
tabuleta
com frases budistas colocadas junto ao túmulo para facilitar a
entrada da alma no céu.
Quando o
ataque era executado, eles levavam à vítima um punhal e uma
bandeira do Japão, para que ela praticasse o seppuku
–suicídio ritualístico em que a pessoa abria a própria barriga e
enfiava a bandeira japonesa no ferimento, geralmente praticado
quando a pessoa caía em desonra. Antes, ela devia assinar uma carta,
previamente escrita pela Shindo Remnei, pedindo perdão pela traição
ao país de origem. Quem se recusasse a fazer o seppuku,
seria morto.
Os
tokkotai
tinham a orientação de, imediatamente após os assassinatos,
procurar a delegacia mais próxima, confessar o crime e não relutar
à prisão. E, caso fosse perguntado a eles quem havia vencido a
guerra, a resposta deveria ser uma só: o Japão.
As ações
do grupo começaram a chamar atenção do Dops (Departamento de Ordem
Política e Social), que passou a perseguir todo aquele que
supostamente fazia parte da Shindo Remnei. E mais: leis proibiam
qualquer tipo de comunicação em japonês (incluindo os jornais
nipônicos que circulavam aqui), desautorizavam reuniões entre os
orientais sem prévia autorização e restringiam a movimentação de
dinheiro entre eles.
Mesmo
assim, a Shindo Remnei conseguia recursos e pessoal para montar um
aparato que desejava apregoar a não rendição japonesa. Os
artifícios usados para isso incluíam, por exemplo, falsificações
grosseiras de edições da revista americana “Life”, montadas
(com frases em japonês coladas e fotocopiadas) de modo a parecer que
o Japão havia saído vencedor da guerra.
O grupo
atuava em cidades do centro-oeste do Estado de São Paulo como
Bastos, Osvaldo Cruz e Penápolis. Algumas mortes aconteceram na
capital paulista, na Liberdade, bairro da região central da cidade
onde os japoneses se concentraram.
Sem
qualquer senso de planejamento, com métodos primários de ação e
sem o apoio da população paulista, a Shindo Remnei foi exterminada
em 1947, quando a polícia do Estado de São Paulo conseguiu fazer
cerco à organização.
ESBARRÃO
NA PAUTA Morais
achou o tema Shindo Remnei sem querer, enquanto fazia as apurações
para “Chatô – O Rei do Brasil”, biografia do dono dos Diários
Associados, Assis Chateaubriand. O jornalista entrevistava uma nissei ex-namorada do empresário
-Chateaubriand a havia conhecido quando o pai dela foi preso pelo Dops, e precisava
da influência política do empresário para sair da prisão. Morais
perguntou porque o homem havia sido preso, ao que ela respondeu:
“porque ele era da Shindo Remnei”.
Com a
curiosidade despertada, quis saber mais sobre o nome que jamais
ouvira, mas a moça fugiu do assunto, dizendo que aquilo era uma
questão de famílias japonesas. Impossível: o Dops sempre foi um
departamento responsável por questões políticas e não iria se
meter em pendengas de parentes.
O
jornalista passou então a buscar informações sobre a Shindo Remnei
com amigos descendentes nipônicos, mas ninguém sabia do que se
tratava. Demorou para Morais ter algo concreto. “Só consegui
quando um amigo advogado me alertou a procurar algum processo
envolvendo o grupo nos arquivos do Tribunal de Justiça de São
Paulo. Achei um, com 170 volumes, e a partir daí consegui puxar todo
o fio condutor da história”, lembra Morais.
Vencida a
dificuldade em achar vestígios da existência do grupo, outro
contratempo apareceu: nenhum dos envolvidos com a seita queria falar.
“Alguns fingiam não falar português, então contratei um
intérprete e aí entendi o real motivo de tanta relutância: eles
não queriam que um gaijin
[termo pejorativo como japoneses chamam não-japoneses] se envolvesse
com uma questão que era deles”, diz o jornalista.
Entretanto,
o tempo fez com que os ex-membros da Shindo Remnei chegassem a uma
conclusão. “Quando consegui fazer as entrevistas, eles me
revelaram que era melhor um gaijin
contar essa história do que alguém que poderia ter parte ou opinião
sobre o caso”.
FIRMES
NA CRENÇA Morais
diz que este não é o primeiro caso em que encontra um tema de livro
fazendo pesquisas. Ele dá como exemplo o guatemalteco Raúl Ernesto
Cruz León, mercenário que fez vários atentados em Cuba, foi preso
na ilha e condenado à pena de morte (comutada depois para prisão
perpétua). Ele é personagem de “Os Últimos Soldados da Guerra
Fria”, sobre agentes secretos infiltrados em Cuba por organizações
americanas de extrema-direita que visavam tirar Fidel Castro do
poder.
“Cruz
León não tinha ideologia nenhuma. Explodia bombas em Cuba para
ganhar US$ 1.500 por ação e para se parecer com o [ator
americano]
Silvester Stalone. Ainda vou fazer um livro sobre esse cara”,
afirma o jornalista.
Antes de
começar outros projetos, Morais acompanhou a produção do filme
“Corações Sujos”, de 2011, dirigido por Vicente Amorim e
baseado no livro. Com atores brasileiros e japoneses, teve lançamento
no Japão, diferentemente do livro, que não ganhou tradução para o
japonês e só teve vendida lá, nas comunidades onde se concentram
dekasseguis,
a edição brasileira. Morais acompanhou os dois lançamentos em
loco.
Foi também
em terras japonesas que Fernando Morais viu uma demonstração de que
o fanatismo dos membros da Shindo Remnei só terminaria com a morte
deles. Dos sete que aparecem na capa, Morais encontrou apenas um
ainda vivo. O jornalista soube, depois do livro já nas prateleiras,
de outro, que morava no Japão. A TV Globo conseguiu encontrá-lo. Na
entrevista, o repórter perguntou ao homem, já bem velho, se ele
faria tudo de novo. A resposta: “Claro! Um traidor da pátria não
é gente. Mas isso não o transforma num cachorro. Então, se ele não
é gente e não é um animal, merece morrer”.
“É
muito forte isso. Muito forte...”, afirma Morais.
Título: Corações Sujos
Autores: Fernando Morais
Editora:
Companhia das Letras
Páginas: 352
Preço
médio: R$ 54