quinta-feira, 5 de setembro de 2013

A União Do Voto



É curioso ler "Ensaio Sobre A Lucidez" em época de protestos. Tanto na história de papel quanto na história de carne e osso (e bombas e balas de borracha), o povo justificou o uso do artigo definido. E, nos dois casos, os governos ficaram um tanto perdidos...

No livro de José Saramago, a população da capital de um país vota em massa em branco. Sabotagem? Ou cansaço de incompetência? O governo fica com a primeira opção, cerca a capital, declara estádio de sítio, ninguém-entra-ninguém-sai, busca enlouquecida por culpados. E nem passa pela cabeça deles querer saber o motivo da insatisfação.

Os dois protestos foram contra a política tal como ela é feita. Não foi especificamente contra ninguém, nem contra partido A ou B. O governo do livro responde com estupidez, inclusive empanturrando (e, depois, bem mais do que isso) a mulher do médico que aparece no romance "Ensaio Sobre A Lucidez".

Contra o voto? Não. O escritor português mostra como a união e o uso de uma ferramenta democrática oficial pode combater a oficialidade tosca, que suga a sociedade ao invés de servi-la (sua obrigação). É a população corroendo o esquema por dentro. 2014 está aí... 

Título: Ensaio Sobre a Lucidez
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 328
Preço médio: R$ 52

sábado, 24 de agosto de 2013

Nem Homens, Nem Cães


O fanatismo em seu estado mais cru

A capa do livro se assemelha a um quadro: mostra sete japoneses que mais parecem modelos posando para um retrato de guerreiros do século 20. Mas não é bem o caso. Esses homens foram presos ao perseguir um cabo da Força Pública (como era chamada a Polícia Militar nos anos 1940). Eles queriam vingar com morte o mais terrível crime que poderia ser cometido contra a nação japonesa (segundo os japoneses da época), e que o cabo havia feito ao acabar com uma reunião não autorizada: pisar na bandeira branca com um círculo vermelho no centro.

A imagem dos sete é a face de Corações Sujos, do jornalista Fernando Morais, que conta a história da Shindo Remnei (em português, Liga do Caminho dos Súditos), organização fundamentalista surgida no Brasil no início dos anos 40 para proteger imigrantes do Japão, então inimigo dos Aliados na Segunda Guerra Mundial.

Com o fim da guerra e a rendição assinada pelo imperador Hiroíto em 1945 (com direito a pronunciamento em rádio anunciando a derrocada japonesa), passou a congregar japoneses que, ao contrário dos fatos, acreditavam na vitória nipônica naquela batalha. E passou a ter um único objetivo: matar os japoneses que não acreditavam nessa “vitória”. Ou, como eram chamados os derrotistas, os “corações sujos”.

Os sete queriam mostrar na foto que, apesar de presos, ainda podiam mostrar força. Fisicamente mirrados, a única energia que restava a eles era a crença de que o Japão não havia sido derrotado, mantendo a invencibilidade em guerras que já durava 2.500 anos. Essa energia, aliás, não serviu para praticar a vingança, já que eles não conseguiram matar o cabo.  

Mas nem todos os inimigos dos tokkotai (como eram chamados os membros da Shindo Remnei) tiveram essa sorte. Ao todo, como mostra o livro, 23 pessoas foram mortas pela organização e 147 ficaram feridas.

Antes dos ataques, os “corações sujos” recebiam avisos: ora com ofensas, escritas em japonês, pintadas em frente às suas casa (com dizeres como “traidor da pátria”), ora recebendo um sotoba, tabuleta com frases budistas colocadas junto ao túmulo para facilitar a entrada da alma no céu.

Quando o ataque era executado, eles levavam à vítima um punhal e uma bandeira do Japão, para que ela praticasse o seppuku –suicídio ritualístico em que a pessoa abria a própria barriga e enfiava a bandeira japonesa no ferimento, geralmente praticado quando a pessoa caía em desonra. Antes, ela devia assinar uma carta, previamente escrita pela Shindo Remnei, pedindo perdão pela traição ao país de origem. Quem se recusasse a fazer o seppuku, seria morto.

Os tokkotai tinham a orientação de, imediatamente após os assassinatos, procurar a delegacia mais próxima, confessar o crime e não relutar à prisão. E, caso fosse perguntado a eles quem havia vencido a guerra, a resposta deveria ser uma só: o Japão.

As ações do grupo começaram a chamar atenção do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), que passou a perseguir todo aquele que supostamente fazia parte da Shindo Remnei. E mais: leis proibiam qualquer tipo de comunicação em japonês (incluindo os jornais nipônicos que circulavam aqui), desautorizavam reuniões entre os orientais sem prévia autorização e restringiam a movimentação de dinheiro entre eles.

Mesmo assim, a Shindo Remnei conseguia recursos e pessoal para montar um aparato que desejava apregoar a não rendição japonesa. Os artifícios usados para isso incluíam, por exemplo, falsificações grosseiras de edições da revista americana “Life”, montadas (com frases em japonês coladas e fotocopiadas) de modo a parecer que o Japão havia saído vencedor da guerra.

O grupo atuava em cidades do centro-oeste do Estado de São Paulo como Bastos, Osvaldo Cruz e Penápolis. Algumas mortes aconteceram na capital paulista, na Liberdade, bairro da região central da cidade onde os japoneses se concentraram.

Sem qualquer senso de planejamento, com métodos primários de ação e sem o apoio da população paulista, a Shindo Remnei foi exterminada em 1947, quando a polícia do Estado de São Paulo conseguiu fazer cerco à organização.

ESBARRÃO NA PAUTA Morais achou o tema Shindo Remnei sem querer, enquanto fazia as apurações para “Chatô – O Rei do Brasil”, biografia do dono dos Diários Associados, Assis Chateaubriand. O jornalista entrevistava uma nissei ex-namorada do empresário -Chateaubriand a havia conhecido quando o pai dela foi preso pelo Dops, e precisava da influência política do empresário para sair da prisão. Morais perguntou porque o homem havia sido preso, ao que ela respondeu: “porque ele era da Shindo Remnei”.

Com a curiosidade despertada, quis saber mais sobre o nome que jamais ouvira, mas a moça fugiu do assunto, dizendo que aquilo era uma questão de famílias japonesas. Impossível: o Dops sempre foi um departamento responsável por questões políticas e não iria se meter em pendengas de parentes.

O jornalista passou então a buscar informações sobre a Shindo Remnei com amigos descendentes nipônicos, mas ninguém sabia do que se tratava. Demorou para Morais ter algo concreto. “Só consegui quando um amigo advogado me alertou a procurar algum processo envolvendo o grupo nos arquivos do Tribunal de Justiça de São Paulo. Achei um, com 170 volumes, e a partir daí consegui puxar todo o fio condutor da história”, lembra Morais.

Vencida a dificuldade em achar vestígios da existência do grupo, outro contratempo apareceu: nenhum dos envolvidos com a seita queria falar. “Alguns fingiam não falar português, então contratei um intérprete e aí entendi o real motivo de tanta relutância: eles não queriam que um gaijin [termo pejorativo como japoneses chamam não-japoneses] se envolvesse com uma questão que era deles”, diz o jornalista.

Entretanto, o tempo fez com que os ex-membros da Shindo Remnei chegassem a uma conclusão. “Quando consegui fazer as entrevistas, eles me revelaram que era melhor um gaijin contar essa história do que alguém que poderia ter parte ou opinião sobre o caso”.

FIRMES NA CRENÇA Morais diz que este não é o primeiro caso em que encontra um tema de livro fazendo pesquisas. Ele dá como exemplo o guatemalteco Raúl Ernesto Cruz León, mercenário que fez vários atentados em Cuba, foi preso na ilha e condenado à pena de morte (comutada depois para prisão perpétua). Ele é personagem de “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”, sobre agentes secretos infiltrados em Cuba por organizações americanas de extrema-direita que visavam tirar Fidel Castro do poder.

“Cruz León não tinha ideologia nenhuma. Explodia bombas em Cuba para ganhar US$ 1.500 por ação e para se parecer com o [ator americano] Silvester Stalone. Ainda vou fazer um livro sobre esse cara”, afirma o jornalista.

Antes de começar outros projetos, Morais acompanhou a produção do filme “Corações Sujos”, de 2011, dirigido por Vicente Amorim e baseado no livro. Com atores brasileiros e japoneses, teve lançamento no Japão, diferentemente do livro, que não ganhou tradução para o japonês e só teve vendida lá, nas comunidades onde se concentram dekasseguis, a edição brasileira. Morais acompanhou os dois lançamentos em loco.

Foi também em terras japonesas que Fernando Morais viu uma demonstração de que o fanatismo dos membros da Shindo Remnei só terminaria com a morte deles. Dos sete que aparecem na capa, Morais encontrou apenas um ainda vivo. O jornalista soube, depois do livro já nas prateleiras, de outro, que morava no Japão. A TV Globo conseguiu encontrá-lo. Na entrevista, o repórter perguntou ao homem, já bem velho, se ele faria tudo de novo. A resposta: “Claro! Um traidor da pátria não é gente. Mas isso não o transforma num cachorro. Então, se ele não é gente e não é um animal, merece morrer”.

“É muito forte isso. Muito forte...”, afirma Morais.


Título: Corações Sujos
Autores: Fernando Morais
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 352
Preço médio: R$ 54

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Fala De Mestre


O que aconteceria se estivessem juntos, bem pertinho um do outro, Nelson Rodrigues, Millôr Fernandes, Henfil, Pelé, Joel Silveira, Ivan Lessa e João Saldanha? Simples: talento jorrando pra todo lado. O melhor é que isso já acontece, no (incompreensivelmente) pouco falado site do jornalista Geneton Morais Neto.

Em 2008, para um trabalho de faculdade, tive a honra de fazer uma breve entrevista com Geneton sobre o www.geneton.com.br – fundamental para quem quer conhecer personagens fantásticos de um ângulo original. Bom, quando um mestre fala é bom prestar atenção. Então...

Como o senhor teve a idéia de criar este site?
O site é apenas uma maneira de expor e tornar acessíveis entrevistas e reportagens que, de outra maneira, estariam "mofando" nos arquivos. Não é um blog, porque não tenho tempo (nem disposição) para um exercício de atualização diária. Mas pode ser útil para eventuais internautas que estejam em busca de informações sobre nomes como Paulo Francis, Joel Silveira, Ivan Lessa e tantos outros.

Não há propagandas nele. O senhor o “sustenta” com sua própria grana?
O custo é irrisório. De três em três meses, pago uma taxa pela hospedagem do site. É esta uma das vantagens da revolução provocada pela Internet: hoje, é possível publicar sem gastar. É como se cada um pudesse ser dono de um jornal.

Nunca houve reclamação pelo fato de o site ter matérias tão longas, com pouquíssimas fotos, como a entrevista com o Nelson Rodrigues, que tem 40 mil caracteres?
Não. Os textos não foram feitos para a internet. A entrevista com Nélson Rodrigues, por exemplo, é um capítulo de um livro que publiquei há anos. Além de tudo, o espaço na Internet é livre. Em tese, não há limites. O único limite é ditado pela paciência e pela disposição dos eventuais leitores.
Além de ninguém meter o bedelho, quais são as outras vantagens de se escrever num site?
A grande e insubstituível vantagem é o fato de que, na internet, um repórter pode publicar suas entrevistas e reportagens sem interferência de "alienígenas" - entre eles, os editores, com suas temíveis tesouras.

O senhor acredita que a internet vai um dia substituir o papel?
De início, eu achava que não. Mas hoje tenho minhas dúvidas. É provável que os jornais de papel sobrevivam, mas com outro espírito. Não podem continuar publicando na primeira página, como se fossem novidades, notícias que o leitor já conhece desde a véspera.

Quanto tempo o senhor acredita que o jornal de embrulhar peixe vai durar? E as revistas?
Tanto os jornais como as revistas sobreviverão, mas serão consumidos, acho, por uma faixa específica de leitores. As multidões frequentarão os sites.

Seu site é licenciado pelo esquema de Criative Commons. Muita gente já o usou para alguma coisa?
Para dizer a verdade, não tenho idéia. Aliás, eu nem sabia que o site era licenciado! A única utilidade do site, acho, é a de matar a curiosidade de eventuais visitantes sobre as grandes figuras que entrevistei. Também pode servir como passatempo para quem esteja com insônia.

O senhor nunca pensou em transformar o geneton.com.br num site multimídia, com, por exemplo, trechos de vídeos?
Adiante, pode ser. Por ora, o geneton.com.br cumpre o papel que lhe cabe: é um site simples, feito por uma pessoa nas (poucas) horas vagas. Nasceu para ser um "armazém" de textos. As portas estão abertas para os fregueses. Resta-me torcer para que as visitas não saiam decepcionadas.

 Geneton e Joel Silveira: a Terra deve ter parado de girar  
para assistir a este encontro...

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Viagem Fora Dos Cartões Postais


Ruy Castro é, como todo bom jornalista, um curioso fanático. Ele também gosta de viajar. Então, ele junta esses dois prazeres para descobrir o que os cartões postais e os guias de turismo não conseguem mostrar. Sobre o mundo todo e sobre o Rio de Janeiro que ele adotou, ele gosta dos becos, das histórias ocultas, do não óbvio.

E por que não juntar essas histórias em livro? Foi o que ele fez em Terramarear, coletânea de relatos das experiências vividas por ele e por sua namorada, a escritora Heloísa Seixas, mundo afora. Os textos foram escritos em diversas épocas, mostrando o que acontecia nos lugares naqueles momentos. Exemplo disso são os artigos de Ruy para o jornal Estado de S.Paulo quando do bicentenário da Revolução Francesa – ele estava lá e acompanhou toda comemoração, e como a política brasileira fez sua marcante (e custosa) presença no evento.

Os países são o de sempre – Estados Unidos, França, Itália, Alemanha, Portugal –, o que não tira o encanto do livro, pois as histórias mostram o “subsolo”, o que não costuma ganhar foco. Conta a relação de lugares com a arte, onde foram gravadas algumas cenas de cinema, onde ter aventuras gastronômicas e o faro de Ruy para achar o que parece inachável. Os textos de Heloísa tem menos graça, mas vale sua experiência na “terrível e sombria” União Soviética comunista.

Também ganha um pedaço partes do Rio que as pessoas não prestam atenção. Nele, estão o nascer do sol de Copacabana; o verão, a estação hedonista, e que ganha personalidade naquela cidade; a arte arquitetônica de lá.

O livro deixa a seguinte torcida: quem sabe um dia Ruy não faça um livro falando de lugares curiosos da Letônia, uma cena gravada na Malásia, uma visita inusitada de um artista em Belize. Para um país como o Brasil, que no momento acostuma-se a ficar na crista da onda, seria interessante e importante conhecer países fora do eixo EUA-Europa Ocidental pelos olhos de um jornalista competente e com curiosidade de barata.

 
Título: Terramarear
Autores: Ruy Castro e Heloísa Seixas
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 232
Preço médio: R$ 42

terça-feira, 31 de julho de 2012

O Místico Azulão


Há personagens da cultura brasileira que, sabe-se lá porquê, só andam vivos na memória de quem conviveu com eles. Gente com histórias fascinantes e vivências ricas, e de episódios que demoram para ganhar a rua. Jayme Ovalle foi um deles. Ele conviveu com Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes; chegou até a compor uma música com o primeiro que virou um clássico: “Azulão”.

Mas este não está perdido. Felizmente, a vida dele nos encontra nas páginas de O Santo Sujo, do jornalista Humberto Werneck, em bela edição feita pela Cosac Naif. Ali está a vida do Místico, desde o início de sua existência, no Chile (não dele propriamente, mas do avô, expulso de casa), seu nascimento no Pará e seus relacionamentos com gente poderosa e as paixões arrebatadoras.

Não leia se estiver com sono ou disperso – a escrita lírica e sensual de Werneck pode lhe fazer escapar um fiapo de história que, em seguida, poderá fazer falta. Lírica e linda, aliás, fazendo entender melhor a simplicidade e a beleza dos caminhos de Ovalle, além de deixar a gostosa dúvida: que tipo de artista Ovalle foi? O grande número de citações não atrapalha a fluência da leitura, embora, em alguns momentos, elas poderiam ser transformadas em texto corrido.

Quando chegar ao epílogo, tome fôlego: é um dos mais lindos e originais já encontrados em biografias. A personagem nele é a filha de Ovalle, Mariana, e mostra como o mundo roda e as histórias se repetem. Um belo presente para nós e uma homenagem ao sujeito que fazia questão de andar por aí de monóculo.


O Levi Dosan fez uma breve entrevista com o autor, Humberto Werneck:

Como o “místico” apareceu na sua vida?
A primeira vez que ouvi falar em Jayme Ovalle foi aos 16 anos, quando li uma frase dele ("O suicídio é um ato de publicidade: a publicidade do desespero") usada como epígrafe num conto do [jornalista e escritor mineiro] Ivan Ângelo. Procurei livros dele nas bibliotecas – nada. Só mais adiante soube que Ovalle inspirou um personagem do romance O Encontro Marcado, do [também escritor e também mineiro] Fernando Sabino: o velho Germano, um diplomata aposentado que diz coisas bizarras, poéticas, inusitadas – exatamente como Ovalle na vida real. Foi na leitura de Sabino, não só desse romance como de várias crônicas, que comecei a formar na cabeça a figura singularíssima desse artista sem obra.

O senhor acredita que ainda haja muitos personagens da cultura brasileira que mereceriam mais atenção?
Há vários. Por exemplo, Augusto Frederico Schmidt – aliás, muito amigo de Ovalle e marido de uma sobrinha dele –, que, além de poeta, foi empresário de sucesso, fundador do primeiro supermercado do Brasil, além de intelectual que teve papel importante no governo do presidente Juscelino Kubistchek. Outro extraordinário personagem, esse ainda menos conhecido, é Evandro Pequeno, músico, jornalista, homem erudito, de quem falo um pouco na biografia de Ovalle.

Que tipo de resposta dos leitores de O Santo sujo o senhor recebeu?
A maioria dos leitores que se manifestaram nunca tinha ouvido falar em Ovalle. E todos, sem exceção, se mostraram encantados com ele.

E um breve relato da experiência ovalleana de Humberto :
Se soubesse o que me esperava, provavelmente não teria feito o livro. Não quero valorizar o meu trabalho, mas a batalha para reconstituir a figura e a vida de um personagem sobre quem se sabia muito pouco, praticamente já sem contemporâneos (Ovalle morreu em 1955, aos 61 anos), foi uma empreitada insana. Costumo dizer que foi algo semelhante ao trabalho dos técnicos para reconstruir um avião espatifado, como forma de conhecer a causa do acidente. Mas, pensando bem, esta não é uma boa imagem, pois os técnicos de antemão sabem como era o avião – ao passo que eu nem desconfiava da extraordinária riqueza e complexidade do meu personagem, do qual não tinha mais que uma tênue ideia e algumas informações, várias delas equivocadas. Foram 17 anos para reconstituir Jayme Ovalle, artista que, mesmo não tendo obra, influenciou vários outros, entre eles figuras graúdas como Manuel Bandeira e Vinícius de Moraes.



Título: O Santo Sujo
Autor: Humberto Werneck
Editora: Cosac Naif
Páginas: 400
Preço médio: R$ 72

terça-feira, 24 de julho de 2012

Um Retrato Da Imprensa Na Cochia


Em 1992, nosso país passou por um negócio de nome estranho: impeachment. Ou seja: o presidente foi convidado a se retirar de seu posto. O hoje senador Fernando Collor de Mello saiu da presidência pela porta dos fundos, entrou na porta da frente do avião e foi para Miami gastar o dinheiro que só o Diabo sabe como ele conseguiu.

Como a imprensa cobriu a primeira eleição direta para presidente depois dos anos cinzas da ditadura? Como jornais, revistas e as emissoras de televisão mostraram os anos Collor de governo? São questões que o jornalista Mário Sérgio Conti pretendeu responder em Notícias do Planalto, livro que mostra os bastidores dos bastidores do jornalismo naquele período.

O livro, ganhador do prêmio Jabuti de reportagem, segue por dois caminhos: como os veículos de comunicação reportaram os anos colloridos e como esses veículos surgiram. Mostra Victor desaconselhando o filho Roberto a formar uma revista semanal; Domingos e seu começo como galã de novela; Octávio, os sapatos estranhos, a rodoviária, o jornal; Roberto, a morte do pai no banheiro e a penhora da casa; João e o sogro do governo.

Alguns casos nebulosos são esmiuçados, como a edição do debate do segundo turno entre Collor e Lula – afinal de contas, a Globo forçou ou não a barra a favor de Collor? Conti passa pelas ordens dadas, pelos envolvidos (Roberto Marinho, Boni, Alberico Cruz e Armando Nogueira) e as consequências geradas a cada um deles.

Conti usa sua experiência como ex-editor chefe da revista Veja, ainda na época em que a Veja praticava jornalismo (1992-1997), para entrar em labirinto tão pantanoso. Aliás, Mário, hoje da revista piauí e apresentador do programa Roda Viva, da TV Cultura, saiu da Editora Abril para escrever o livro, que consumiu dois anos de pesquisa, inclusive com ex-chefes – ele também trabalhou na Folha de S. Paulo. Um bom retrato para se conhecer aqueles que nos abastecem de informação.

P.S.: vale a pena ver o Roda Viva em que Conti fala do livro (é, o mundo roda...). Serve para ver o que acontece quando se junta muitos jornalistas na mesma gaiola:
www.youtube.com/watch?v=1DCZEa2NOEE



Título: Notícias do Planalto
Autor: Mário Sérgio Conti
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 752
Preço médio: R$ 78
OBS.: há uma versão econômica, de papel mais simples e 528 páginas, que sai por R$ 39,50.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Como Se Disseca Leões


O livro Na Toca dos Leões, a história da agência de publicidade W/Brasil (hoje WMcCann) rendeu uma baita dor de cabeça ao seu autor, o jornalista Fernando Morais, por conta de um caso relatado nele. Nas eleições para presidente de 1989, o hoje deputado federal Ronaldo Caiado teria sugerido a ideia de obrigar mulheres nordestinas a fazer laqueadura. Caiado entrou com um processo, o livro foi apreendido, e Morais, proibido de falar de sua obra, algo que, segundo ele, não acontecia nem na época da ditadura.

Histórias quentes como essa fazem parte da vida de um dos maiores publicitários de todos os tempos, Washington Olivetto. O livro mostra como é o efervescente mundo da publicidade, em que o Brasil faz escola e ensina a outros países. E não é só isso: Morais conta a criatura e os criadores, com perfis de Olivetto e dos seus dois sócios na W: Gabriel Zellmeister e Javier Llussá Ciuret.

Morais topou escrevê-lo depois de um pedido de Olivetto, que, ao ler o clássico O Reino e o Poder (de Gay Talese), a história do jornal The New York Times, ficou com vontade de ter uma biografia para chamar de sua. O livro, no entanto, nem de longe é chapa-branca, e conta com a tradicional chatice (no bom sentido) de Morais em contar os detalhes e os detalhes dos detalhes.

O jornalista passa por todas as fases de Olivetto, desde a infância (quando ficou um ano sem poder andar), a sacada que o fez entrar na publicidade, sua entrada na agência DPZ (e sua conturbada saída de lá), a fundação da W/Brasil (à princípio W/GGK, em sociedade com uma empresa suíça) e como sua agência e seu nome se tornaram fortes no mercado da comunicação. E populares também: basta lembrar que, só por Jorge Ben Jor, ela já foi citada em música duas vezes.

O livro reserva um capítulo ao mais delicado episódio vivido por Olivetto: seu sequestro, em 2001, depois de parar numa falsa blitz. Morais relata todo o incidente e a operação que o libertou – aliás, o sequestro aconteceu enquanto o jornalista fazia a apuração para o livro. Bom para quem quer ler sobre uma história de sucesso, e para o ego do corintiano Olivetto também – porque a primeira biografia a gente nunca esquece.

 
Título: Na Toca dos Leões
Autor: Fernando Morais
Editora: Planeta
Páginas: 496
Preço médio: R$ 54,90

terça-feira, 10 de julho de 2012

O Vermelho E O Cristalino


Biografias de jornalistas são sempre bem vindas – porque também somos pessoas; porque jornalistas também podem ter boas histórias; porque conhecer como e quem faz jornalismo ajuda a todos a entender esse ofício tão importante. E, quando se tem um verdadeiro personagem dessa profissão, aí a pena vale o dobro.

É o caso de Tarso de Castro, que teve a sua vida colocada em papel em 75 kg de Músculo e Fúria, do jornalista Tom Cardoso. Ideia oportuna essa a de registrar a vida de um dos fundadores d'O Pasquim. E ele tinha de participar mesmo da fundação da mais anárquica das publicações. Tarso era um indomável, sobretudo quando o assunto era bebida, mulheres, irreverência – e qualidade para escrever.

Quanto à bebida, não teve culpa – começou a tomar umas por questões profissionais, ainda na época em que trabalhava no jornal do pai, no Rio Grande do Sul. Quanto à irreverência, compensava as loucuras que fazia com sagacidade e inteligência – hilário saber que, na sua passagem pela Folha de S.Paulo, dava expediente nos bares próximos, e só voltava à redação se Lilian Pacce, hoje entendedora de moda, fosse buscá-lo. Merece atenção também sua participação na música “Detalhes”, aquela mesmo, do rei...

Como revés, apenas alguns piolhos na revisão de conteúdo – há no livro, três vezes em páginas próximas, a informação de que Leonel Brizola era cunhado do presidente golpeado João Goulart – mas nada que atrapalhe a leitura. Nele, você vai conhecer um jornalista que fazia jornalismo com vermelho (de sangue de repórter) e o cristalino (dos etílicos).

O Levi Dosan fez três perguntas para o autor, Tom Cardoso:

Como surgiu a ideia de fazer a biografia do Tarso de Castro?
Meu pai, Jary Cardoso, atualmente editor de Opinião do jornal A Tarde, em Salvador, trabalhou com o Tarso em duas publicações: JA e Folhetim. Meu pai tinha vontade de escrever um livro sobre imprensa alternativa e, tarsista de carteirinha, fazer justiça ao personagem Tarso de Castro, o verdadeiro criador d'O Pasquim, que hoje não é nem citado nas matérias especiais sobre o jornal. Ouvindo meu pai falar sobre a importância de Tarso, o estilo passional, o sucesso com as mulheres, a coragem e o atrevimento etc., não tive dúvida que a vida do cara valia um livro. Meu pai me entregou uma caixa com todas as publicações editadas pelo Tarso, li tudo e comecei as entrevistas. Terminei tudo em um ano.

A imagem que se tinha dele, e que já não era tão conhecida, era a de um jornalista porralouca, um incontrolável. Você acredita que esse estereótipo acabou depois do livro?
O Tarso, apesar da porralouquice, era um fazedor de coisas, e fazer jornalismo durante o regime militar não era para qualquer um. A porralouquice fez d'O Pasquim o jornal que foi, aberto a todos os movimentos. Se não fosse pelo Tarso, diretor de redação, O Pasquim não teria a mesma força, nem o mesmo tom libertário. Se dependesse do Millor, do Ziraldo e do Francis, as grandes entrevistas (Flávio Cavalcanti, Roberto Carlos, Leila Diniz) nem existiriam. É claro que o estilo do Tarso, o indomável, o perdulário, também contribuiu para que os jornais não sobrevivessem por muito tempo ou que ele (no caso d'O Pasquim e da Folha) acabasse expulso pelos desafetos. A Folha, por exemplo, perdeu muito com a saída dele.

Por que o Millor Fernandes não quis falar sobre Tarso?
Eu queria fazer uma biografia passional, no estilo Tarso. O meu livro é um livro a favor do Tarso, não é um livro de manual, não tem o “outro lado”, tanto que mandei um faz para a casa do Millor, pedindo a entrevista, ele não respondeu e eu não insisti. O Millor já tem uma legião de bajuladores, e o Tarso estava esquecido. E ele teve, sim, uma atitude covarde durante o episódio da prisão do pessoal d'O Pasquim. Os que defendem dizem que ele escreveu todo o jornal enquanto os outros estavam presos, mas o cara escreveu e não foi incomodado. Todo mundo sabia o endereço do Millor. E por que ninguém bateu na sua porta? No mínimo estranho...

 

Título: 75 kg de Músculo e Fúria
Autor: Tom Cardoso
Editora: Planeta
Páginas: 280
Preço médio: R$ 44,90

terça-feira, 3 de julho de 2012

Ele Tentou...


Eu não tenho sangue de barata!” Você já deve ter dito isso. Se já, com certeza não estava na pele do diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que dedicou toda sua vida adulta trabalhando na Organização das Nações Unidas, a famosa ONU. Ele fez de um tudo lá: engoliu burocracias, negociou com facínoras, teve esperança, ajudou a montar e remontar nações. E morreu por isso.

O Homem que Queria Salvar o Mundo, da jornalista americana Samantha Power, conta a vida de Sérgio e toda sua carreira na ONU, onde começou a trabalhar aos 17 anos inspirado pelo pai, também diplomata. Queria cuidar de gente, e em determinados momentos até conseguiu, como na volta de milhares de refugiados cambojanos ao seu país de origem. Mas teve de enfrentar politicagens e pessoas mais preocupadas com documentos do que com corações e mentes.

Samantha mostra o caráter de Vieira de Mello, sua dedicação que o fez deixar de lado a vida pessoal e pousar em dois dos maiores massacres étnicos do século 20: Ruanda e Bósnia (onde sua atuação fui fundamental para que se descobrisse os crimes contra a humanidade cometidos lá). Participou ativamente da criação do Timor Leste, que, depois de uma sangrenta batalha, conseguiu sua independência da Indonésia. E teve o privilégio de ouvir mentiras de George W. Bush, inventor da invasão do Iraque, onde Vieira de Mello faria sua derradeira missão antes de morrer num atentado suicida – o último capítulo reconstitui em detalhes a explosão do caminhão que acabou com o prédio onde Sérgio estava, mostrando como aquele país foi invadido sem nenhuma estratégia.

A biografia prima por não falar apenas de Sérgio. Samantha faz uma cuidadosa ambientação – política, geográfica e humanitária –, o que possibilita ao leitor percorrer os caminhos pelos quais a vida de Sérgio andou. O único aspecto ruim da edição são as notas explicativas, colocadas no fim do livro, ao invés de estarem no rodapé, o que facilitaria a leitura.

Querer salvar o mundo pode parecer prepotência, mas foi exatamente o que Sérgio queria fazer. Pensando alto, conseguiu fazer muito numa instituição como a ONU, sem muito poder prático. Tentando seguir a lógica de que alguém pode não gostar de outro povo, mas tem a obrigação de respeitá-lo, e nada justifica que queria matá-lo, Sérgio buscou sempre uma meta: a paz.

No caderno de fotos, há um registro de Sérgio com líderes sérvios-bósnios, após uma reunião para acordo de paz na região. Na mesma imagem estão, há poucos metros de distância, Sérgio e Radovan Karadzic, principal responsável pelos massacres na Bósnia e que, dentro em breve, estará no banco dos réus de Haia. Uma pergunta a se fazer a Sérgio quando chegarmos ao céu: “o que se passou na sua cabeça nesse momento?”.

A uma certeza é possível chegar, sem perguntar: ele tentou...

 
Título: O Homem que Queria Salvar o Mundo
Autora: Samantha Power
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 688
Preço médio: R$ 66

terça-feira, 26 de junho de 2012

Memórias De Um Senhor Gentil


Zuenir Ventura é um dos jornalistas mais conceituados do Brasil; passou pelos principais veículos de imprensa do país; escreveu livros que revelaram temas nunca antes tratados de forma tão bem explicada (vide Cidade Partida, que mostra o início das organizações criminosas do Rio de Janeiro e as conseqüências da omissão do poder público no quesito segurança); e, nas horas vagas (e nas ocupadas também) é um homem gentil, com sua fala mansa e seu jeito sempre didático de falar.

Alguém assim tem uma porção de histórias guardadas em sua memória. Mas, guardadas, elas não servem para muita coisa – quando ganham a rua e as páginas de algum livro, trazem prazer e conhecimento. É o que acontece com Minhas Histórias dos Outros, reunião de depoimentos de Ventura sobre fatos curiosos de sua carreira.

Sempre elegante, o jornalista narra com habilidade seus causos: seu início na profissão – assim como o colega Millor Fernandes, entrou na imprensa por acaso, que seu talento soube aproveitar; casos delicados, como o suicídio do poeta Pedro Nava, em que dá uma aula de como um repórter deve se comportar; a “terrível” vingança a que submeteu um adversário, algo difícil de imaginar em se tratando de alguém tão pacato quanto Ventura; o caso em que o gravador lhe deu um olé.

O livro fecha com a história comovente de Genésio, testemunha do assassinato de Chico Mendes, um dos maiores combatentes da destruição da natureza e do crescimento da agricultura predatória no Norte do Brasil. Ventura o conheceu quando foi ao Acre cobrir a investigação e o julgamento do caso – reportagem que gerou o livro Crime e Castigo, da coleção de Jornalismo Literário da Companhia das Letras. Ameaçado de morte, Genésio teve de sair do Acre. Como não havia ninguém para ajudá-lo, Ventura resolveu tirar o rapaz daquele ninho de cobra. As aventuras que viveu fora de sua terra e seu relacionamento com o jornalista, cheio de idas e vindas, são emocionantes.

Além da costumeira competência de Ventura de escrever histórias, vale pela curiosidade de espiar um pouco a produção jornalística nas suas internas. E, claro, conhecer um dos profissionais mais competentes do Brasil.



Título: Minhas Histórias dos Outros
Autor: Zuenir Ventura
Editora: Planeta
Páginas: 270
Preço médio: R$ 44,90

terça-feira, 19 de junho de 2012

E Como Eles Fazem, Hein?!


É a pergunta que todo interessado em literatura um dia deve ter feito. Como acontece a magia de vir a história maravilhosa, os personagens bem criados, as situações empolgantes, as frases que mexem com o nosso ser? Como Escrevo?, coletânea de depoimentos organizada pelo bibliotecário José Domingos de Brito, responde em boa parte essas curiosidades.

O livro traz relatos curtos de 103 escritores, tirados das mais diversas fontes, seguidos de uma breve biografia para situar o leitor. Estão na coletânea Anthony Burgess (que escreveu Laranja Mecânica, inspirador do filme), Clarice Lispector (que fez do seu “como escrevo” uma bela prosa lírica), Dalton Trevisan, Graciliano Ramos (e seu trabalho de “lavadeira de Alagoas”), Carlos Heitor Cony, Philip Roth, Moacir Scliar, entre outros. Textos introdutórios do próprio Scliar, de Ignácio de Loyola Brandão e do organizador dão um toque especial e despertam a curiosidade.

Como de se esperar, alguns relatos até são próximos, mas nunca iguais. Tem escritor que anota ideias, tem quem não anote; o que acredita ser desagradável começar um livro; tem o que pensa a palavra como algo que “não foi feito para enfeitar, brilhar como outro falso; a palavra foi feita para dizer”; o que não faz rascunhos e não revisa; o que escreve à mão e depois datilografa – e nem chega perto do computador; o que já escreveu dois livros num navio; e por aí vai.

E, como de se esperar, o livro não tem a pretensão de ser um “guia para escrever” ou “práticas para se imitar”, e nem o leitor deve encará-lo assim. São pitadas, temperos, curiodisses que deixam a leitura ainda mais saborosa. É metalinguagem ajudando a abrir portas na literatura.

 
Título: Como Escrevo?
Autor: José Domingos de Brito (org.)
Editora: Novera
Páginas: 232
Preço médio: R$ 39