segunda-feira, 21 de maio de 2012

Uma Metrópole Gastronômica


Ponto de parada obrigatório para turistas do mundo inteiro, o Mercado Municipal de São Paulo é um dos mais tradicionais redutos da boa culinária
 
Você está andando pelas ruas estreitas e organizadas do Mercado Municipal de São Paulo. De repente, se depara com um cesto de rambutãs. Essa fruta malaia, prima da lichia, com formato de uma mamona gigante vermelha, por dentro parecida com uma uva sem casca de caroço grande, é bem diferente do que se encontra em feiras livres por aí. Mas basta pedir a Alfredo Barreto, dono da banca Casa Gonzales, para experimentar. Seu sabor, entre o doce e o amargo, acaba com qualquer estranheza.

A banca, especializada em frutas exóticas, também vende mangostão – também da Malásia, doce médio, tem uma casca grossa (mas não dura) e tem por dentro a forma de uma cabeça de alho; a pitaia, do deserto do Atacama, no Chile – vermelha ou amarela, parece embrulhada em papel camurça; e um morango americano gigantesco e vermelho como sangue.

Na barraca da frente, a Banca do Juca (que ganhou fama na novela “A Próxima Vítima”, de Sílvio de Abreu) o simpático e galanteador Leonardo vai lhe mostrar a melancia branca. Igualzinha à tradicional, é um pouco menos aguada e, como já diz o nome, albina por dentro. Ao vê-la, não perca a oportunidade de levar: é cultivada apenas em poucas épocas do ano. E que tal levar uma fruta pão? Cozida por dez minutos, fica uma delícia com manteiga, tal como o pão francês da padaria da esquina.

Caso queira incrementar ainda mais a comida, é indispensável uma parada no G. Frederico para comprar um dos mais de 300 tipos de temperos encontrados lá. Tem casca de limão e de laranja em saquinhos, secas e em floquinhos – podem ser usadas tanto em pratos doces quanto em salgados. Há ainda o forte lemon & pepper, que deve ser usado com moderação.

Esse é só um couvert das possibilidades do Mercado Municipal de São Paulo, que, desde 25 de janeiro de 1933, enche as mesas e as barrigas de paulistanos e turistas. Obra do escritório de Francisco Ramos de Azevedo, também responsável pelo Teatro Municipal de São Paulo, a construção encanta desde a entrada. Vizinho do córrego Tamanduateí, da rua 25 de março e do terminal de ônibus Parque Dom Pedro II, o prédio bege de estilo neoclássico ocupa 12.600 metros quadrados. Atualmente, 350 toneladas de alimentos são movimentadas nos 290 boxes do Mercadão, nome pelo qual também é conhecido.

Os números portentosos superam períodos de dificuldades. O Mercadão, inclusive, já esteve a perigo. Após pequenas reformas na década de 60, chegou aos anos 70 sem dar conta da já imensa população de São Paulo. Em 1973, com a criação do Ceasa e o início do processo de degradação daquela região do centro da cidade, cogitou-se até a demolição do prédio. Felizmente, a ideia não seguiu adiante e o mercado ficou de pé. Depois de uma grande reforma em 2004, o Mercado Municipal se modernizou, inclusive ganhando um mezanino com bares e lanchonetes. E hoje, mais do que vender comida, o endereço virou importante ponto turístico da maior metrópole do Brasil.


“Vim do Rio de Janeiro a passeio e vou ficar o dia todo. Quero conhecer cada pedaço do Mercadão”, diz a dona de casa Gisélia Nascimento. Ela aproveitou para levar a irmã, a assistente social Izabel Nascimento, que, apesar de morar em São Paulo, nunca havia visitado o lugar. “Sempre vi em reportagens e fotos, mas nunca pensei que fosse tão bonito, por dentro e por fora”. Além de ver, as irmãs, obviamente, querem sentir. “Claro, queremos provar o pastel de bacalhau e o sanduíche de mortadela”.

O sanduichão tem 250 g de mortadela, 50 g de queijo prato e 20 g de tomate seco, tudo dentro de um pão fresquinho e crocante. À primeira vista, assusta pela quantidade de mortadela, que estufa as duas metades do pão. Mas é tão bonito, com o queijo derretido passeando entre as várias fatias, que logo o susto passa. O cheiro complementa a vontade de qualquer pessoa em devorar o lanche. E, na primeira mordida, percebem-se todos os ingredientes em harmonia, sem o gosto enjoativo de excesso de mortadela que o susto inicial pode passar.

“Cada detalhe é bem cuidado, assim o lanche fica tão especial. A mortadela e o queijo são cortados na hora de fazer o sanduichão e usamos gordura vegetal a 180 graus em vez do óleo convencional”, diz Jaciel Pereira, gerente de produção do Hocca Bar, que inventou o lanche que desde 1952 encanta os paladares dos visitantes do Mercadão. Ah, e nada de congelar a mortadela – as peças ficam fora da geladeira, até porque não dá nem tempo de fazer estoque.

Pereira não se arriscou a chutar quantos sanduíches de mortadela são feitos por dia nas três lanchonetes do Hocca Bar no Mercadão. “Tudo o que sei é que, em dias de movimento médio, usamos 30 peças de sete quilos. Em dias de movimento forte, chegamos a usar 50 peças”. Fazendo os cálculos, podemos chegar à impressionante marca de 1.400 lanches e 350 quilos de mortadela, num dia de boa frequência.

O não menos conhecido pastel de bacalhau é feito com o mesmo zelo. A receita leva grande quantidade de carne desfiada do peixe, salsinha, cebola e azeite, produtos que, juntos, bem preparados, acabam com qualquer dieta. “Tudo tem que ter gosto. A gordura vegetal ajuda a massa a ficar sequinha, então nada atrapalha o sabor dos condimentos”, explica Pereira. Ele revela sem problemas o seu toque especial: o azeite. “Cada item do lanche e do pastel é bem cuidado, mas é o azeite que dá a liga”.
 
Pereira só se esquece de falar do que talvez seja o maior trunfo do lugar: ele próprio. Jaciel tem paixão pelo que faz. Organiza um exército de cozinheiros, controla a qualidade dos produtos e atende jornalistas e curiosos em geral. E é capaz de deixar qualquer um com fome só com as explicações que dá sobre as comidas que o Hocca vende e as formas de preparo. Como um mágico que tira coelhos da cartola, ele tira sabores das palavras.

“Eu falo para todo mundo aqui: você tem de cercar o cliente com os cinco sentidos. Não basta ele sentir o cheiro e o sabor. O visual é importantíssimo, é o primeiro contato que ele tem com a comida”. Isso só não funciona para ele. Jaciel não come nada do que serve fora do horário de expediente. O prato preferido dele? Peixe assado e arroz com legumes. Sanduíche e pastel, só quando precisa fazer controle de qualidade do Hocca.
O Mercado da Cantareira, seu outro nome oficial, virou uma metrópole gastronômica dentro de São Paulo. Como acontece com qualquer grande cidade, chama a atenção com a intensidade da força gravitacional. “Não fico uma semana sem ir lá. Mesmo se eu não tiver nada para comprar, vou só para passear”, diz Maria Sampaio, dona de casa que compra 90% dos produtos consumidos em seu lar no Mercadão. “Virou quase um hábito. E vale a pena. Toda vez que vou lá, descubro algo”.

Mas, afinal de contas, o que torna o Mercadão uma verdadeira instituição? É o prédio encantador? São funcionários como Alfredo e Leonardo, que atendem qualquer pessoa com amizade de infância? São os produtos que parecem surgir ali e em nenhum outro lugar no mundo? Jaciel e sua saborosa descrição? As comidas destruidoras de regime? Possivelmente são todos esses elementos juntos. Assim como no sanduichão e no pastel de bacalhau, a soma dos elementos faz o todo ser especial.

Especial e intocável. Em 2010, depois de anos de discussão sobre o que fazer, a Prefeitura de São Paulo determinou o futuro dos edifícios vizinhos do Mercadão, São Vito, o popular Treme-Treme, e Mercúrio. Bem danificados, com uma reforma que custaria uma fortuna e com planos de construção de um parque no lugar, a solução encontrada foi a demolição. Tudo certo, até que surge o problema: as implosões poderiam trincar os belos vitrais do mercado. O que fazer? Simples: nada vai danificar a aparência do Mercadão. O Treme-Treme está sendo demolido marretada por marretada. O parque que espere.

Delícias do Mercadão. Foto: www.diversalia.com.br

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