Ponto de parada obrigatório para turistas do mundo inteiro, o Mercado Municipal de São Paulo é um dos mais tradicionais
redutos da boa culinária
Você está andando pelas ruas
estreitas e organizadas do Mercado Municipal de São Paulo. De
repente, se depara com um cesto de rambutãs. Essa fruta malaia,
prima da lichia, com formato de uma mamona gigante vermelha, por
dentro parecida com uma uva sem casca de caroço grande, é bem
diferente do que se encontra em feiras livres por aí. Mas basta
pedir a Alfredo Barreto, dono da banca Casa Gonzales, para
experimentar. Seu sabor, entre o doce e o amargo, acaba com qualquer
estranheza.
A banca, especializada em
frutas exóticas, também vende mangostão – também da Malásia,
doce médio, tem uma casca grossa (mas não dura) e tem por dentro a
forma de uma cabeça de alho; a pitaia, do deserto do Atacama, no
Chile – vermelha ou amarela, parece embrulhada em papel camurça; e
um morango americano gigantesco e vermelho como sangue.
Na barraca da frente, a Banca
do Juca (que ganhou fama na novela “A Próxima Vítima”, de
Sílvio de Abreu) o simpático e galanteador Leonardo vai lhe mostrar
a melancia branca. Igualzinha à tradicional, é um pouco menos
aguada e, como já diz o nome, albina por dentro. Ao vê-la, não
perca a oportunidade de levar: é cultivada apenas em poucas épocas
do ano. E que tal levar uma fruta pão? Cozida por dez minutos, fica
uma delícia com manteiga, tal como o pão francês da padaria da
esquina.
Caso queira incrementar ainda
mais a comida, é indispensável uma parada no G. Frederico para
comprar um dos mais de 300 tipos de temperos encontrados lá. Tem
casca de limão e de laranja em saquinhos, secas e em floquinhos –
podem ser usadas tanto em pratos doces quanto em salgados. Há ainda
o forte lemon &
pepper, que deve ser
usado com moderação.
Esse é só um couvert
das possibilidades do Mercado Municipal de São Paulo, que, desde 25
de janeiro de 1933, enche as mesas e as barrigas de paulistanos e
turistas. Obra do escritório de Francisco Ramos de Azevedo, também
responsável pelo Teatro Municipal de São Paulo, a construção
encanta desde a entrada. Vizinho do córrego Tamanduateí, da rua 25
de março e do terminal de ônibus Parque Dom Pedro II, o prédio
bege de estilo neoclássico ocupa 12.600 metros quadrados.
Atualmente, 350 toneladas de alimentos são movimentadas nos 290
boxes do Mercadão, nome pelo qual também é conhecido.
Os números portentosos superam
períodos de dificuldades. O Mercadão, inclusive, já esteve a
perigo. Após pequenas reformas na década de 60, chegou aos anos 70
sem dar conta da já imensa população de São Paulo. Em 1973, com a
criação do Ceasa e o início do processo de degradação daquela
região do centro da cidade, cogitou-se até a demolição do prédio.
Felizmente, a ideia não seguiu adiante e o mercado ficou de pé.
Depois de uma grande reforma em 2004, o Mercado Municipal se
modernizou, inclusive ganhando um mezanino com bares
e lanchonetes. E
hoje, mais do que vender comida, o endereço virou importante ponto
turístico da maior metrópole do Brasil.
“Vim do Rio de Janeiro a
passeio e vou ficar o dia todo. Quero conhecer cada pedaço do
Mercadão”, diz a dona de casa Gisélia Nascimento. Ela aproveitou
para levar a irmã, a assistente social Izabel Nascimento, que,
apesar de morar em São Paulo, nunca havia visitado o lugar. “Sempre
vi em reportagens e fotos, mas nunca pensei que fosse tão bonito,
por dentro e por fora”. Além de ver, as irmãs, obviamente, querem
sentir. “Claro, queremos provar o pastel de bacalhau e o sanduíche
de mortadela”.
O sanduichão tem 250 g de
mortadela, 50 g de queijo prato e 20 g de tomate seco, tudo dentro de
um pão fresquinho e crocante. À primeira vista, assusta pela
quantidade de mortadela, que estufa as duas metades do pão. Mas é
tão bonito, com o queijo derretido passeando entre as várias
fatias, que logo o susto passa. O cheiro complementa a vontade de
qualquer pessoa em devorar o lanche. E, na primeira mordida,
percebem-se todos os ingredientes em harmonia, sem o gosto enjoativo
de excesso de mortadela que o susto inicial pode passar.
“Cada detalhe é bem cuidado,
assim o lanche fica tão especial. A mortadela e o queijo são
cortados na hora de fazer o sanduichão e usamos gordura vegetal a
180 graus em vez do óleo convencional”, diz Jaciel Pereira,
gerente de produção do Hocca Bar, que inventou o lanche que desde
1952 encanta os paladares dos visitantes do Mercadão. Ah, e nada de
congelar a mortadela – as peças ficam fora da geladeira, até
porque não dá nem tempo de fazer estoque.
Pereira não se arriscou a
chutar quantos sanduíches de mortadela são feitos por dia nas três
lanchonetes do Hocca Bar no Mercadão. “Tudo o que sei é que, em
dias de movimento médio, usamos 30 peças de sete quilos. Em dias de
movimento forte, chegamos a usar 50 peças”. Fazendo os cálculos,
podemos chegar à impressionante marca de 1.400 lanches e 350 quilos
de mortadela, num dia de boa frequência.
O não menos conhecido pastel
de bacalhau é feito com o mesmo zelo. A receita leva grande
quantidade de carne desfiada do peixe, salsinha, cebola e azeite,
produtos que, juntos, bem preparados, acabam com qualquer dieta.
“Tudo tem que ter gosto. A gordura vegetal ajuda a massa a ficar
sequinha, então nada atrapalha o sabor dos condimentos”, explica
Pereira. Ele revela sem problemas o seu toque especial: o azeite.
“Cada item do lanche e do pastel é bem cuidado, mas é o azeite
que dá a liga”.
Pereira só se esquece de falar
do que talvez seja o maior trunfo do lugar: ele próprio. Jaciel tem
paixão pelo que faz. Organiza um exército de cozinheiros, controla
a qualidade dos produtos e atende jornalistas e curiosos em geral. E
é capaz de deixar qualquer um com fome só com as explicações que
dá sobre as comidas que o Hocca vende e as formas de preparo. Como
um mágico que tira coelhos da cartola, ele tira sabores das
palavras.
“Eu falo para todo mundo
aqui: você tem de cercar o cliente com os cinco sentidos. Não basta
ele sentir o cheiro e o sabor. O visual é importantíssimo, é o
primeiro contato que ele tem com a comida”. Isso só não funciona
para ele. Jaciel não come nada do que serve fora do horário de
expediente. O prato preferido dele? Peixe assado e arroz com legumes.
Sanduíche e pastel, só quando precisa fazer controle de qualidade
do Hocca.
O Mercado da Cantareira, seu
outro nome oficial, virou uma metrópole gastronômica dentro de São
Paulo. Como acontece com qualquer grande cidade, chama a atenção
com a intensidade da força gravitacional. “Não fico uma semana
sem ir lá. Mesmo se eu não tiver nada para comprar, vou só para
passear”, diz Maria Sampaio, dona de casa que compra 90% dos
produtos consumidos em seu lar no Mercadão. “Virou quase um
hábito. E vale a pena. Toda vez que vou lá, descubro algo”.
Mas, afinal de contas, o que
torna o Mercadão uma verdadeira instituição? É o prédio
encantador? São funcionários como Alfredo e Leonardo, que atendem
qualquer pessoa com amizade de infância? São os produtos que
parecem surgir ali e em nenhum outro lugar no mundo? Jaciel e sua
saborosa descrição? As comidas destruidoras de regime?
Possivelmente são todos esses elementos juntos. Assim como no
sanduichão e no pastel de bacalhau, a soma dos elementos faz o todo
ser especial.
Especial e intocável. Em 2010,
depois de anos de discussão sobre o que fazer, a Prefeitura de São
Paulo determinou o futuro dos edifícios vizinhos do Mercadão, São
Vito, o popular Treme-Treme, e Mercúrio. Bem danificados, com uma
reforma que custaria uma fortuna e com planos de construção de um
parque no lugar, a solução encontrada foi a demolição. Tudo
certo, até que surge o problema: as implosões poderiam trincar os
belos vitrais do mercado. O que fazer? Simples: nada vai danificar a
aparência do Mercadão. O Treme-Treme está sendo demolido marretada
por marretada. O parque que espere.
Delícias do Mercadão. Foto: www.diversalia.com.br
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