sábado, 24 de agosto de 2013

Nem Homens, Nem Cães


O fanatismo em seu estado mais cru

A capa do livro se assemelha a um quadro: mostra sete japoneses que mais parecem modelos posando para um retrato de guerreiros do século 20. Mas não é bem o caso. Esses homens foram presos ao perseguir um cabo da Força Pública (como era chamada a Polícia Militar nos anos 1940). Eles queriam vingar com morte o mais terrível crime que poderia ser cometido contra a nação japonesa (segundo os japoneses da época), e que o cabo havia feito ao acabar com uma reunião não autorizada: pisar na bandeira branca com um círculo vermelho no centro.

A imagem dos sete é a face de Corações Sujos, do jornalista Fernando Morais, que conta a história da Shindo Remnei (em português, Liga do Caminho dos Súditos), organização fundamentalista surgida no Brasil no início dos anos 40 para proteger imigrantes do Japão, então inimigo dos Aliados na Segunda Guerra Mundial.

Com o fim da guerra e a rendição assinada pelo imperador Hiroíto em 1945 (com direito a pronunciamento em rádio anunciando a derrocada japonesa), passou a congregar japoneses que, ao contrário dos fatos, acreditavam na vitória nipônica naquela batalha. E passou a ter um único objetivo: matar os japoneses que não acreditavam nessa “vitória”. Ou, como eram chamados os derrotistas, os “corações sujos”.

Os sete queriam mostrar na foto que, apesar de presos, ainda podiam mostrar força. Fisicamente mirrados, a única energia que restava a eles era a crença de que o Japão não havia sido derrotado, mantendo a invencibilidade em guerras que já durava 2.500 anos. Essa energia, aliás, não serviu para praticar a vingança, já que eles não conseguiram matar o cabo.  

Mas nem todos os inimigos dos tokkotai (como eram chamados os membros da Shindo Remnei) tiveram essa sorte. Ao todo, como mostra o livro, 23 pessoas foram mortas pela organização e 147 ficaram feridas.

Antes dos ataques, os “corações sujos” recebiam avisos: ora com ofensas, escritas em japonês, pintadas em frente às suas casa (com dizeres como “traidor da pátria”), ora recebendo um sotoba, tabuleta com frases budistas colocadas junto ao túmulo para facilitar a entrada da alma no céu.

Quando o ataque era executado, eles levavam à vítima um punhal e uma bandeira do Japão, para que ela praticasse o seppuku –suicídio ritualístico em que a pessoa abria a própria barriga e enfiava a bandeira japonesa no ferimento, geralmente praticado quando a pessoa caía em desonra. Antes, ela devia assinar uma carta, previamente escrita pela Shindo Remnei, pedindo perdão pela traição ao país de origem. Quem se recusasse a fazer o seppuku, seria morto.

Os tokkotai tinham a orientação de, imediatamente após os assassinatos, procurar a delegacia mais próxima, confessar o crime e não relutar à prisão. E, caso fosse perguntado a eles quem havia vencido a guerra, a resposta deveria ser uma só: o Japão.

As ações do grupo começaram a chamar atenção do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), que passou a perseguir todo aquele que supostamente fazia parte da Shindo Remnei. E mais: leis proibiam qualquer tipo de comunicação em japonês (incluindo os jornais nipônicos que circulavam aqui), desautorizavam reuniões entre os orientais sem prévia autorização e restringiam a movimentação de dinheiro entre eles.

Mesmo assim, a Shindo Remnei conseguia recursos e pessoal para montar um aparato que desejava apregoar a não rendição japonesa. Os artifícios usados para isso incluíam, por exemplo, falsificações grosseiras de edições da revista americana “Life”, montadas (com frases em japonês coladas e fotocopiadas) de modo a parecer que o Japão havia saído vencedor da guerra.

O grupo atuava em cidades do centro-oeste do Estado de São Paulo como Bastos, Osvaldo Cruz e Penápolis. Algumas mortes aconteceram na capital paulista, na Liberdade, bairro da região central da cidade onde os japoneses se concentraram.

Sem qualquer senso de planejamento, com métodos primários de ação e sem o apoio da população paulista, a Shindo Remnei foi exterminada em 1947, quando a polícia do Estado de São Paulo conseguiu fazer cerco à organização.

ESBARRÃO NA PAUTA Morais achou o tema Shindo Remnei sem querer, enquanto fazia as apurações para “Chatô – O Rei do Brasil”, biografia do dono dos Diários Associados, Assis Chateaubriand. O jornalista entrevistava uma nissei ex-namorada do empresário -Chateaubriand a havia conhecido quando o pai dela foi preso pelo Dops, e precisava da influência política do empresário para sair da prisão. Morais perguntou porque o homem havia sido preso, ao que ela respondeu: “porque ele era da Shindo Remnei”.

Com a curiosidade despertada, quis saber mais sobre o nome que jamais ouvira, mas a moça fugiu do assunto, dizendo que aquilo era uma questão de famílias japonesas. Impossível: o Dops sempre foi um departamento responsável por questões políticas e não iria se meter em pendengas de parentes.

O jornalista passou então a buscar informações sobre a Shindo Remnei com amigos descendentes nipônicos, mas ninguém sabia do que se tratava. Demorou para Morais ter algo concreto. “Só consegui quando um amigo advogado me alertou a procurar algum processo envolvendo o grupo nos arquivos do Tribunal de Justiça de São Paulo. Achei um, com 170 volumes, e a partir daí consegui puxar todo o fio condutor da história”, lembra Morais.

Vencida a dificuldade em achar vestígios da existência do grupo, outro contratempo apareceu: nenhum dos envolvidos com a seita queria falar. “Alguns fingiam não falar português, então contratei um intérprete e aí entendi o real motivo de tanta relutância: eles não queriam que um gaijin [termo pejorativo como japoneses chamam não-japoneses] se envolvesse com uma questão que era deles”, diz o jornalista.

Entretanto, o tempo fez com que os ex-membros da Shindo Remnei chegassem a uma conclusão. “Quando consegui fazer as entrevistas, eles me revelaram que era melhor um gaijin contar essa história do que alguém que poderia ter parte ou opinião sobre o caso”.

FIRMES NA CRENÇA Morais diz que este não é o primeiro caso em que encontra um tema de livro fazendo pesquisas. Ele dá como exemplo o guatemalteco Raúl Ernesto Cruz León, mercenário que fez vários atentados em Cuba, foi preso na ilha e condenado à pena de morte (comutada depois para prisão perpétua). Ele é personagem de “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”, sobre agentes secretos infiltrados em Cuba por organizações americanas de extrema-direita que visavam tirar Fidel Castro do poder.

“Cruz León não tinha ideologia nenhuma. Explodia bombas em Cuba para ganhar US$ 1.500 por ação e para se parecer com o [ator americano] Silvester Stalone. Ainda vou fazer um livro sobre esse cara”, afirma o jornalista.

Antes de começar outros projetos, Morais acompanhou a produção do filme “Corações Sujos”, de 2011, dirigido por Vicente Amorim e baseado no livro. Com atores brasileiros e japoneses, teve lançamento no Japão, diferentemente do livro, que não ganhou tradução para o japonês e só teve vendida lá, nas comunidades onde se concentram dekasseguis, a edição brasileira. Morais acompanhou os dois lançamentos em loco.

Foi também em terras japonesas que Fernando Morais viu uma demonstração de que o fanatismo dos membros da Shindo Remnei só terminaria com a morte deles. Dos sete que aparecem na capa, Morais encontrou apenas um ainda vivo. O jornalista soube, depois do livro já nas prateleiras, de outro, que morava no Japão. A TV Globo conseguiu encontrá-lo. Na entrevista, o repórter perguntou ao homem, já bem velho, se ele faria tudo de novo. A resposta: “Claro! Um traidor da pátria não é gente. Mas isso não o transforma num cachorro. Então, se ele não é gente e não é um animal, merece morrer”.

“É muito forte isso. Muito forte...”, afirma Morais.


Título: Corações Sujos
Autores: Fernando Morais
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 352
Preço médio: R$ 54

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